sexta-feira, 13 de julho de 2012

ANIVERSARIANTE DO DIA - MARIA DE PAULINHO

CORREIO MFC BRASIL Nº 290


DOM EUGÊNIO SALES
O Cardeal que acolheu perseguidos dos regimes militares

N
a segunda-feira (09), dom Eugênio nos deixou, ao encontro do Pai. Além de sua longa missão religiosa no nordeste e no Rio, atuou com coragem e inteligência na defesa dos direitos humanos.

Uma das atuações de grande destaque da trajetória de dom Eugenio foi quando, de maneira silenciosa, abrigou no Rio mais de quatro mil pessoas perseguidas pelos regimes militares do Cone Sul, entre 1976 e 1982. A maioria vinha da Argentina, mas havia também chilenos, uruguaios e paraguaios. Discretamente, o cardeal cultivou relações com os militares no poder no Brasil e ajudou a salvar vidas. O capítulo inicial dessa história se desenrolou num fim de tarde do outono de 1976, quando um jovem bateu na porta do Palácio São Joaquim, escritório e residência de dom Eugenio, na Glória. Sem documentos, dizia-se refugiado do regime militar instaurado seis semanas antes na Argentina. Dom Eugenio contou ter vivido um conflito.

— Foi um drama. Com o crucifixo na mão, eu pensava: “Como cidadão brasileiro, não posso receber montonero, tupamaro, aqueles refugiados que vinham (...)”. Em seguida, repensava: “Agora eu, como pastor, tenho o dever de receber” — relembrou ele, em entrevista recente.

O cardeal pegou o telefone, um instrumento de trabalho fundamental à sua ação política nos bastidores, e ligou para o general Sylvio Frota, então ministro do Exército.

— Chamei o Frota no telefone (...) e falei: “Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final” — recordou.

Esse gesto acabou se transformando numa grande operação. Para dar conta de tantos pedidos de abrigo de refugiados políticos, dom Eugenio autorizou o aluguel de quartos e depois apartamentos. Foram 80 imóveis alugados em 14 bairros da cidade, como Centro, Lapa, Flamengo, Copacabana e Botafogo. Dom Eugenio mandou abrir os cofres da Mitra e liberou dinheiro também para gastos pessoais, assistência médica e auxílio jurídico. Em pouco tempo, o número de foragidos das ditaduras do Cone Sul chegando ao Rio chegou a 15 por semana.

A ajuda aos perseguidos políticos não se restringiu aos nossos vizinhos. Ajudou presos brasileiros, sem distinções ideológicas, como Sebastião Paixão, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que foi mandado para o presídio da Frei Caneca após ser torturado por 83 dias. Num episódio significativo, dom Eugenio deixou embaraçado o general Abdon Sena, que lhe pediu uma missa pelo aniversário do AI-5...

— Vocês que estão satisfeitos com o AI-5 podem agradecer a Deus, mas não por meu intermédio — respondeu.
  
OS “ANOS DE CHUMBO” E
MOVIMENTOS CRISTÃOS (II)

PRISÕES E TORTURAS DE LEIGOS CRISTÃOS 
NO RIO E SÃO PAULO
Helio Amorim
MFC/RJ

J
osé e Lya Sollero, foram coordenadores Nacionais do Movimento Familiar Cristão - MFC (1977-1980). Sollero, em São Paulo, e sua filha, foram presos por esse esquema militar repressivo nos anos da ditadura. Guida Sollero foi torturada no aparelho do DOI-CODI no Rio, mantida isolada por um ano da família que somente pôde vê-la na audiência da instrução do processo militar. Assisti ao seu depoimento perante uma junta de cinco oficiais militares e um juiz civil, sentados em mesa colocada num palco de auditório, para que a presa ficasse dois metros abaixo, ladeada por dois gigantescos policiais fardados, para completar o cenário de intimidação.


Guida relatou corajosa e detalhadamente as torturas que sofreu reiteradamente: pau-de-arara, choques elétricos, socos e humilhações de todo tipo. Testemunhei a cena, único presente admitido por engano além dos pais e irmãos com suas lágrimas e sofrimento.

Em 1980, na missa de abertura do VIII Encontro Latinoamericano do MFC, em Porto Alegre, nas preces da comunidade, Sollero foi ao altar, relatou as torturas na filha e perdoou publicamente os torturadores. Pode-se imaginar o impacto desse ato e as lágrimas provocadas.

Guida foi libertada finalmente e trazida para casa de Mariana e Cyro Miranda, do MFC e ele seu advogado, recebida com festa e alívio pelas famílias da Comunidade da Barra da Tijuca, sem qualquer condenação, o que confirmava a barbárie gratuita que durou um ano.

Essa Comunidade, com dez famílias do MFC e outros movimentos cristãos, foi invadida por comando militar armado e teve também dois casais presos. Fernando e Letícia Cotrim foram presos sob acusação de pertencer a uma organização política denominada MPL (Movimento Popular de Libertação). Fernando sofreu o horror de ser obrigado a assistir às estúpidas torturas da esposa. Seu depoimento está na Revista Eclesiástica Brasileira (n.47). José e Zilda Villela foram presos pelo aparelho repressivo da aeronáutica por esconder Luiz Bustini, o filho de um amigo que, torturado, revelou o endereço do abrigo.

As pessoas que foram abrigadas na Comunidade foram muitas, enviadas pelas diversas organizações que já não tinham como fazer isso. A Igreja, vários padres, bispos, conventos e outras Instituições religiosas faziam isso também. Em dezembro de 1978, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação, no Rio, coletou vasto material sobre a repressão sofrida pela Igreja naquela década. (1)

Cláudio e Lygia Campos, membros do MFC tiveram seu filho Cláudio, médico, também do MFC, preso e estupidamente torturado a ponto de baixar na UTI do Hospital do Exército, no Rio, depois de forçado a beber grande quantidade de água salgada, com danos graves nos rins. Seus pais foram chamados para entrevista pessoal pelo comandante da repressão militar, general Sílvio Frota, que os alertou sobre o risco de vida do filho por moléstia anterior à prisão. Queixou-se do custo elevado do tratamento que o Exército Brasileiro estava despendendo para tentar salvá-lo. Fui ao hospital e Mons. Trevisan, capelão militar, me relatou a verdade e a gravidade do caso. O jovem médico sobreviveu e foi absolvido de uma acusação irresponsável.

O MFC foi ainda perseguido com a prisão de Jorge Hue, presidente nacional do Movimento nos anos 60, e seu filho estudante. Fui à CNBB, ainda no Rio, relatei o fato interrompendo a reunião geral dos bispos que acontecia naquela manhã. D. Aloysio Lorscheider saiu do auditório, telefonou para o Gen. Frota, aos berros e socando a própria mesa, exigindo a imediata liberdade de Jorge. Foi atendido pelo general, constrangido diante do discurso nada eclesiástico do presidente da CNBB.

(1) Ver Documento Repressão à Igreja no Brasil, 1978, de D. Paulo Evaristo Arns e D. Tomás Balduino: “A máquina de tortura instalada no Estado não havia poupado nem sacerdotes”.