segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

RECORDANDO AS MUDANÇAS NA IGREJA

Hélio Amorim - MFC/RJ
Hélio Amorim
MFC/RJ

Os mais jovens podem não acreditar nestas recordações...

N
o passado ainda recente, antes do Concílio Vaticano II, anos 60, aprendíamos nos bancos das nossas escolas católicas que a concepção do homem era dicotômica: corpo e alma, duas realidades distintas, uma destinada a sofrer "desterrada neste vale de lágrimas", a outra destinada ao céu ou inferno, com provável passagem purificadora pelo purgatório, no primeiro caso.

O corpo era um risco para a salvação, por estar fortemente sujeito às tentações do demônio, sempre presente e próximo de cada incauto, pronto a levá-lo à perdição.

A forma de se proteger da ação permanente do demônio onipresente eram as mortificações e sacrifícios auto impostos, a oração e leituras piedosas mas,  especialmente, as práticas religiosas que ofereciam o passaporte garantido para o céu.

A mais difundida era comungar em nove consecutivas primeiras sextas-feiras do mês. Segundo constava, numa revelação de Jesus em aparição a um dos santos da Igreja, essas nove comunhões assegurariam definitivamente a salvação. Todos então partiam para a conquista desse habeas corpus preventivo, alimentando secretamente a expectativa de liberdade total depois dessa conquista... e, cuidado: morrer antes da nona comunhão poderia pôr tudo a perder.

Acontece que essa salvação assim espertamente assegurada, não nos livraria de pagar a conta pelas bobagens cometidas durante a vida. Uma passagem purificadora pelo purgatório era quase inevitável, a menos que morrêssemos "em estado de graça", absolvidos no último momento de todas as culpas, pela confissão feita a um sacerdote.

Como essa possibilidade era precária, e considerando que a permanência no purgatório era determinada em dias, anos ou séculos, conforme a gravidade das nossas artes, éramos orientados a acumular créditos durante a vida. Chamavam-se indulgências. Nos livros de orações, cada uma terminava com a indicação correspondente dos créditos gerados cada vez que fosse recitada: 300 dias de indulgência, por exemplo. Algumas dessas orações eram apenas uma curta invocação, chamada jaculatória, para facilitar-nos decorar e repeti-las maquinalmente dezenas ou centenas de vezes ao dia.

Para a contabilidade, o colégio distribuía, no início de cada mês, um impresso em que devíamos anotar as indulgências que se conquistavam cada dia, com espaço para a totalização no fim do mês. Algumas orações, como uma de Santo Tomás de Aquino, asseguravam indulgência plenária, se rezadas imediatamente depois da comunhão. Desequilibravam a contabilidade e confundiam as anotações porque apagavam todas as penalidades de purgatório acumuladas até aquele momento...

Todas essas indulgências eram gratuitas, ao contrário de práticas do passado em que a história registra a sua venda habitual, pela Igreja, a personalidades pouco merecedoras, interessadas em comprar o céu a preços módicos (uma das razões alegadas por Lutero para romper com a Igreja há cinco séculos).

Por outro lado, os cristãos, mesmo adultos, estavam proibidos de ler uma imensa lista de livros que poderiam colocar em risco a sua fé. Era pecado grave desrespeitar o Index dos livros proibidos. Lá estavam, por exemplo, os de Darwin e dos seus seguidores, que elaboravam a teoria da evolução das espécies, derrubando a crença equivocada de que o relato bíblico da Criação fosse uma crônica histórica, já arranhada pelas descobertas de Copérnico e Galileu - todos eles cientistas a quem a Igreja pediu perdão.

Muitas outras restrições e proibições se acumulavam, engessando o desenvolvimento da consciência crítica dos cristãos para não se perderem, resultando em alienação e fuga à responsabilidade na construção do Reino.

Ora, o famoso Index dos livros proibidos desapareceu, e as teorias de Darwin, já agora muito desenvolvidas e documentadas, são ensinadas nas escolas católicas.

A separação entre o corpo e a alma, como duas realidades distintas e superpostas, herança do neoplatonismo, já não faz parte da doutrina católica. A história humana é valorizada, não é tempo de degredo ou exílio, e o mundo não deve ser um vale de lágrimas. O cristão é desafiado a empenhar-se na construção de um mundo justo e fraterno, para que assim seja feita a vontade de Deus, aqui na terra, como já prometido para o céu.

Muito mais foi mudando ao longo destes anos ainda recentes, e vão continuar mudando neste papado. É um processo saudável de purificação de crenças e normas que mantinham cristãos adultos no nível de fé infantil.

As muitas falas surpreendentes e a primeira exortação apostólica de Francisco, “Evangelii Gaudium”, já avançam decididamente na depuração de doutrinas e práticas ensinadas nas últimas décadas.

Texto extraído do CORREIO MFC BRASIL Nº 345 de 14/12/2013