Hélio Amorim - MFC/RJ |
Hélio Amorim
MFC/RJ
Os mais jovens podem não acreditar nestas recordações...
N
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o
passado ainda recente, antes do Concílio Vaticano II, anos 60, aprendíamos nos
bancos das nossas escolas católicas que a concepção do homem era dicotômica:
corpo e alma, duas realidades distintas, uma destinada a sofrer
"desterrada neste vale de lágrimas", a outra destinada ao céu ou
inferno, com provável passagem purificadora pelo purgatório, no primeiro caso.
O
corpo era um risco para a salvação, por estar fortemente sujeito às tentações
do demônio, sempre presente e próximo de cada incauto, pronto a levá-lo à
perdição.
A
forma de se proteger da ação permanente do demônio onipresente eram as
mortificações e sacrifícios auto impostos, a oração e leituras piedosas
mas, especialmente, as práticas
religiosas que ofereciam o passaporte garantido para o céu.
A
mais difundida era comungar em nove consecutivas primeiras sextas-feiras do
mês. Segundo constava, numa revelação de Jesus em aparição a um dos santos da
Igreja, essas nove comunhões assegurariam definitivamente a salvação. Todos
então partiam para a conquista desse habeas corpus preventivo, alimentando
secretamente a expectativa de liberdade total depois dessa conquista... e,
cuidado: morrer antes da nona comunhão poderia pôr tudo a perder.
Acontece
que essa salvação assim espertamente assegurada, não nos livraria de pagar a
conta pelas bobagens cometidas durante a vida. Uma passagem purificadora pelo
purgatório era quase inevitável, a menos que morrêssemos "em estado de
graça", absolvidos no último momento de todas as culpas, pela confissão
feita a um sacerdote.
Como
essa possibilidade era precária, e considerando que a permanência no purgatório
era determinada em dias, anos ou séculos, conforme a gravidade das nossas
artes, éramos orientados a acumular créditos durante a vida. Chamavam-se
indulgências. Nos livros de orações, cada uma terminava com a indicação
correspondente dos créditos gerados cada vez que fosse recitada: 300 dias de
indulgência, por exemplo. Algumas dessas orações eram apenas uma curta
invocação, chamada jaculatória, para facilitar-nos decorar e repeti-las
maquinalmente dezenas ou centenas de vezes ao dia.
Para
a contabilidade, o colégio distribuía, no início de cada mês, um impresso em
que devíamos anotar as indulgências que se conquistavam cada dia, com espaço
para a totalização no fim do mês. Algumas orações, como uma de Santo Tomás de
Aquino, asseguravam indulgência plenária, se rezadas imediatamente depois da
comunhão. Desequilibravam a contabilidade e confundiam as anotações porque
apagavam todas as penalidades de purgatório acumuladas até aquele momento...
Todas
essas indulgências eram gratuitas, ao contrário de práticas do passado em que a
história registra a sua venda habitual, pela Igreja, a personalidades pouco
merecedoras, interessadas em comprar o céu a preços módicos (uma das razões
alegadas por Lutero para romper com a Igreja há cinco séculos).
Por
outro lado, os cristãos, mesmo adultos, estavam proibidos de ler uma imensa
lista de livros que poderiam colocar em risco a sua fé. Era pecado grave
desrespeitar o Index dos livros proibidos. Lá estavam, por exemplo, os de
Darwin e dos seus seguidores, que elaboravam a teoria da evolução das espécies,
derrubando a crença equivocada de que o relato bíblico da Criação fosse uma
crônica histórica, já arranhada pelas descobertas de Copérnico e Galileu -
todos eles cientistas a quem a Igreja pediu perdão.
Muitas
outras restrições e proibições se acumulavam, engessando o desenvolvimento da
consciência crítica dos cristãos para não se perderem, resultando em alienação
e fuga à responsabilidade na construção do Reino.
Ora,
o famoso Index dos livros proibidos desapareceu, e as teorias de Darwin, já
agora muito desenvolvidas e documentadas, são ensinadas nas escolas católicas.
A
separação entre o corpo e a alma, como duas realidades distintas e superpostas,
herança do neoplatonismo, já não faz parte da doutrina católica. A história
humana é valorizada, não é tempo de degredo ou exílio, e o mundo não deve ser
um vale de lágrimas. O cristão é desafiado a empenhar-se na construção de um
mundo justo e fraterno, para que assim seja feita a vontade de Deus, aqui na
terra, como já prometido para o céu.
Muito mais foi mudando ao longo destes anos ainda recentes,
e vão continuar mudando neste papado. É um processo saudável de purificação de
crenças e normas que mantinham cristãos adultos no nível de fé infantil.
As muitas falas surpreendentes e a primeira exortação
apostólica de Francisco, “Evangelii Gaudium”, já avançam decididamente na
depuração de doutrinas e práticas ensinadas nas últimas décadas.
Texto
extraído do CORREIO MFC BRASIL Nº 345 de 14/12/2013