"A Palavra de Deus é concreta"
Pe. Raniero
Cantalamessa
Franciscano Capuchinho
e
Pregador da Casa Pontifícia
O
|
Deus bíblico é um Deus que fala. "Fala o
Senhor, o Deus dos deuses [...] e não se calará" (Sl 50,1-3). O Senhor
mesmo repete infinitas vezes na Bíblia: "Ouve, meu povo, deixa-me
falar" (Sl 50,7). Nisso a Bíblia vê a
mais clara diferença dos ídolos, que "têm boca e não falam" (Sl 115,5). Deus serviu-se da Palavra para comunicar-se
com as criaturas humanas.
Contudo,
que significado devemos atribuir a expressões tão antropomórficas como
"Deus disse a Adão", "assim fala o Senhor", "diz o
Senhor", "oráculo do Senhor" e outras semelhantes? Trata-se
evidentemente de um falar diferente do humano, um falar aos ouvidos do coração.
Deus fala como escreve! "Colocarei a minha lei no seu coração, vou
gravá-la em seu coração", diz o profeta Jeremias (Jr 31,33). Ele escreve no coração e também suas
palavras, Ele as faz ressoarem em você. Ele próprio o afirma expressamente por
meio do profeta Oseias, falando de Israel como de uma esposa infiel:
"Pois, agora, eu é que vou seduzi-la, levando-a para o deserto e falando-lhe
ao coração" (Os 2,16).
Insiste-se,
por vezes, em um falar quase material e externo de Deus: "Então, o Senhor
vos falou do meio do fogo. Ouvíeis o som das palavras, mas não enxergáveis
figura alguma, só havia uma voz!" (Dt
4,12; cf. At 9,7).
Entretanto, também nestes casos trata-se da dramatização de um evento interior
e espiritual, em todo caso, de um falar diferente do humano.
Deus
não tem boca nem fôlego humanos: Sua boca é o profeta e Seu sopro o Espírito
Santo. "Tu serás a minha boca", diz Ele próprio a Seus profetas, ou
ainda, "porei minha palavra sobre teus lábios". É o sentido da
célebre frase: "Foi sob o impulso do Espírito Santo que pessoas humanas
falaram da parte de Deus" (2Pd 1,21). A tradição espiritual
da Igreja cunhou para este modo de falar diretamente à mente e ao coração a
expressão "locuções interiores".
Todavia,
trata-se de um falar em sentido verdadeiro; a criatura recebe uma mensagem que
pode traduzir em palavras humanas. É de tal modo vívido e real o falar de Deus
que o profeta recorda com precisão o lugar e o tempo em que certa palavra
"veio" sobre ele: "No ano em que morreu o rei Ozias" (Is 6,1), "No trigésimo ano, no dia cinco do
quarto mês, encontrava-me eu entre os exilados, junto ao rio Cobar" (Ez 1,1), "No dia primeiro do sexto mês do
segundo ano do rei Dario" (Ag 1,1).
A
Palavra de Deus é tão concreta que a respeito dela é possível dizer que
"cai" sobre Israel, como se fosse uma pedra: "O Senhor lançou
uma ameaça a Jacó, ela caiu sobre Israel" (Is
9,7).
Em outras vezes, a mesma concretude e materialidade é expressa não com o
símbolo da pedra que fere, mas do pão que se come com gosto: "Bastava
descobrir tuas palavras e eu já as devorava, tuas palavras para mim são prazer
e alegria do coração" (Jr 15,16; cf. também
Ez 3,1-3).
Nenhuma voz humana
atinge profundamente o homem como a Palavra de Deus. "[A Palavra de
Deus] penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os
pensamentos e as intenções do coração" (Hb 4,12). Por vezes, o falar
de Deus "se faz ouvir com força... corta os cedros do Líbano" (Sl 29,4-5), ao passo que em outras vezes assemelha-se
ao "murmúrio de uma leve brisa" (1Rs
19,12).
Conhece todas as tonalidades do falar humano.