POR UMA REVISÃO DA FORMAÇÃO DO CLERO
Olinto Pegoraro*
Constatamos que, ao longo da história, a Igreja Católica tratou de forma diferenciada dois assuntos considerados fundamentais: a doutrina e a moral.
Nas questões de doutrina dogmática, exige-se uniformidade. Qualquer desvio é cobrado com retratação pública, e quem se recusa a fazê-la é afastado do ensino da teologia, assim como destituído das funções religiosas. Existem muitos teólogos nessa condição marginalizada.
Quanto aos desvios morais, muito mais claros e evidentes que os supostos erros, as autoridades eclesiásticas procedem lentamente, na esperança do arrependimento dos faltosos.
A quem se arrepende e promete emendar-se a igreja oferece o perdão e segue a vida. Sem dúvida, essa prática se baseia nos exemplos de perdão que Jesus ofereceu generosamente a tantos pecadores e pecadoras.
Entretanto, a igreja de Jesus é dirigida por homens com as limitações de todos, seja qual for o seu grau hierárquico. Em casos de desvios morais, os faltosos são mantidos em observação, são transferidos de um lugar para outro, de diocese para diocese e até de país para país, na expectativa do arrependimento e emenda do faltoso.
A sociedade contemporânea entende essa atitude como negligência.
Essa tolerância conta com outro aliado: o silêncio. O silêncio para não gerar escândalo e para manter a imagem da igreja. Dessa maneira, casos de graves desvios morais são encobertos por espessa camada de cinza. Se, por acaso, algo transparece, a autoridade competente, local ou vaticana, faz um pedido de desculpas.
O silêncio e o segredo dispensam até o processo canônico, isto é, o processo no tribunal eclesiástico. Um processo civil seria abominável. Por isso, é auspiciosa a manchete da Folha, segundo a qual a igreja passa a recomendar explicitamente que casos de pedofilia sejam levados à Justiça.
Isso porque os tempos mudaram. A ética humana sofreu enormes transformações a partir da segunda metade do século 20, notadamente na esfera dos comportamentos sexuais. As pílulas anticoncepcionais e as camisinhas contribuíram enormemente na dita revolução sexual.
Essas transformações comportamentais tiveram por base um dos mais importantes princípios da ética moderna, o princípio da autonomia.
Pessoas autônomas são aquelas que respondem por seus atos sem depender das normas religiosas ou de qualquer outra regra moral.
O atual caso de pedofilia mostra que os novos tempos da ética da autonomia alcançaram também a Igreja Católica. Pelos direitos humanos processam-se padres, dioceses e até o Vaticano. Já não são suficientes o reconhecimento do erro e o pedido de desculpa às vítimas. Será necessária uma intervenção jurídica, canônica e civil, visto que o clérigo faltoso é, ao mesmo tempo, um cidadão.
A história mostra o resultado negativo de normas aplicadas durante séculos, como o celibato, no caso atual da pedofilia. É preciso reconhecer esse fato, e não tergiversar. As normas envelhecem e, com o andar do tempo, geram efeito contrário do esperado.
De fato, toda a estrutura de normas e disciplinas que sustentam o celibato dos padres não faz mais sentido para o mundo contemporâneo. O que faz sentido é um clérigo de muita fé, bem formado em teologia e filosofia e plenamente integrado na sociedade. A atual estrutura da formação do clero age contra os grandes propósitos da igreja.
Nos dias atuais, é incompreensível, por exemplo, que a mulher ainda esteja longe do exercício sacerdotal. Uma revisão profunda da formação do clero certamente incluirá a mulher. Esse é o pensamento da comunidade cristã em sua grande maioria.
Não faço esse comentário olhando as coisas de fora, como simples espectador que nada tem a ver com o assunto. Pelo contrário, como católico, punido por suposto desvio doutrinário, sinto-me profundamente envolvido, e essas notas querem contribuir para que, no seio da igreja, encontremos novos rumos.
Duas atitudes são decisivas: primeiro, não ter medo de quebrar paradigmas arcaicos. Segundo, prestar máxima atenção à realidade, aos modos de vida atuais. Assim poderemos construir um novo paradigma na igreja, que inclua homens e mulheres nos exercícios do sacerdócio.
Será um fato novo, um novo dia, há muito esperado. Essa é a lição positiva que emerge dos atuais debates sobre desvios morais em setores da Igreja Católica.
*OLINTO PEGORARO, ex-padre, doutor em filosofia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica), é professor de ética na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde. É autor, entre outras obras, do livro "Ética dos Maiores Mestres". O autor é Sócio Fundador da SEAF – Associação de Estudos e Atividades Filosóficos (1976), tendo sido seu Presidente e, hoje, é respeitado e reconhecido com o título de “Presidente de Honra”.
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