sexta-feira, 15 de março de 2013

CORREIO MFC BRASIL Nº 314

  
   
DESAFIOS AO NOVO PAPA
FREI BETTO
ESCRITOR E ASSESSOR DE MOVIMENTOS SOCIAIS

São muitas as especulações quanto ao cardeal que será eleito sucessor de Bento XVI agora em março. A rigor, qualquer homem batizado na Igreja Católica é potencial candidato.
Embora haja bolsas de apostas em torno dos "papabiles”, os variados palpites costumam dar zebra. Exceção foi o cardeal Ratzinger. Era teólogo do papa João Paulo II, presidente da Congregação da Doutrina da Fé, decano do colégio cardinalício e gozava, como teólogo, de certa ascendência sobre a maioria dos cardeais. Foi eleito pontífice em 2005, aos 78 anos.

Há indícios de que, desta vez, será eleito um cardeal mais jovem. A Igreja não suporta mais tantos conclaves frequentes. Minha geração acompanhou as escolhas de João XXIII (1958), Paulo VI (1963), João Paulo I (1978), João Paulo II (1978) e Bento XVI (2005).

A eleição do polonês Karol Woytila, em 1978, tirou dos italianos o monopólio do papado, que durou 456 anos. O que foi reiterado pela eleição de seu sucessor em 2005, o alemão Joseph Ratzinger.

D
e novo, a Itália tentará recuperar a sé romana. Entre os italianos, os nomes mais cotados são os dos cardeais Gianfranco Ravasi, de 70 anos, presidente do Pontifício Conselho de Cultura, e Ângelo Scola, de 71 anos, arcebispo de Milão. Ravasi, homem da poderosa Cúria Romana, é visto como bom teólogo e homem espiritualizado. João Paulo II e Bento XVI o escolheram como pregador do retiro papal na quaresma. Scola é poliglota, vinculado ao movimento Comunhão e Libertação e considerado conservador.

Poderá o futuro papa ser um não europeu? A Europa estará presente na Capela Sistina com 60 cardeais. E bastarão 77 votos para eleger o novo pontífice. Será uma grande surpresa a escolha de um papa não europeu. Infelizmente a Igreja Católica ainda é demasiadamente eurocentrada. Há entre os europeus quem encare os demais continentes como sucursais. Ainda perduram resquícios de séculos de colonialismo.

Se Bento XVI foi um papa de transição, seu sucessor terá pela frente a difícil missão de adequar a Igreja à pós-modernidade. Um cardeal conservador seguiria os passos de Bento XVI e manteria a barca de Pedro alheia aos tempos atuais.

Quais os grandes desafios a serem enfrentados pelo novo papa? Primeiro, implementar as decisões do Concílio Vaticano II, ocorrido há 50 anos! Isso significa mexer na estrutura piramidal da Igreja, flexibilizar o absolutismo papal, instaurar um governo colegiado. Seria saudável que o Vaticano deixasse de ser um Estado e, o papa, chefe de Estado, e fossem suprimidas as nunciaturas, suas representações diplomáticas. A Santa Sé precisa confiar nas conferências episcopais, como a CNBB, que representam os bispos de cada país.

Outro desafio é dar fim ao tabu em relação à moral sexual. Hoje, é vetado debater esse tema no interior da Igreja. A rigor, os católicos estão todos proibidos de manter relações sexuais que não sejam com a explícita intenção de procriar; contrair segundas núpcias após divórcio; usar preservativos; admitir o aborto em certas circunstâncias; aprovar a união de homossexuais; defender o fim do celibato obrigatório para padres e o direito de acesso das mulheres ao sacerdócio.

Resultado: a dupla moral. Uma, a da doutrina oficial; outra, a praticada pelos fiéis. E os escândalos de pedofilia como reflexo da suposta coincidência entre vocação ao sacerdócio e vocação ao celibato. Na Igreja primitiva a distinção era nítida. E no evangelho de Marcos, no primeiro capítulo, consta que Jesus curou a sogra de Pedro. Deduz-se, pois, que Pedro tinha mulher. O que não o impediu de ser escolhido cabeça da Igreja.

Um terceiro desafio é a relação da fé com a ciência. Bento XVI reabilitou Teilhard de Chardin (1881-1955), padre jesuíta e renomado cientista, proibido em toda a sua vida de publicar um único livro. E João Paulo II pediu perdão, em nome da Igreja, por esta ter condenado Galileu e Darwin, abolindo a teoria criacionista da doutrina católica e admitindo o evolucionismo.

Falta, entretanto, aprofundar nas hostes católicas o debate sobre o uso de células troncos, a nanotecnologia, a fertilização de embriões e outros temas que concernem à biotecnologia e à bioética. A ciência se emancipou da religião e corre o risco de abandonar os parâmetros éticos e morais, caso os potenciais provedores desses parâmetros fiquem divorciados dela.

O quarto desafio são os diálogos ecumênico, entre as várias Igrejas cristãs, e o inter-religioso, da Igreja Católica com as denominações religiosas não cristãs. Para o ecumenismo, Roma precisa admitir que seu bispo é pastor universal dos católicos, mas não dos cristãos. E se o bispo de Roma serve de referência à fé dos católicos, não deveria, no entanto, exercer autoridade direta sobre as Igrejas espalhadas mundo afora.

Quanto ao diálogo inter-religioso, é importante abrir-se ao mundo muçulmano, livrando a Igreja do preconceito que o identifica com fundamentalismo. A teologia oficial da Igreja deve muito a islâmicos como Averrois e Avicena, que abriram as vias de acesso a Aristóteles, cuja filosofia respalda o tomismo. Acresce-se a isso a importância do diálogo com o budismo e o ateísmo.

Ser papa é uma honra. Mas, também, uma cruz, bem traduzida no melhor e mais evangélico dos títulos do romano pontífice: Servo dos servos de Deus.

TEMA PARA ESTUDO E DEBATE
CRACK:
POR UMA POLÍTICA MAIS HUMANA
Pedro Vicente Bittencourt - da Democracia Viva
(Texto condensado)

Usuários de droga na Rua Helvétia, na região da cracolândia,
em 13 de janeiro 
(Apu Gomes/Folhapress)
Como surgiu o crack? De onde vem? Como funciona no organismo? Por que, de uma hora para outra, se alastrou com tanta velocidade pelo Brasil, inclusive em cidades do interior? E, a pergunta de um milhão de reais: como fazer para que a droga deixe de cobrar o alto preço em vidas, atualmente a sua marca trágica?
Se todas essas respostas estivessem dando sopa por aí, provavelmente sequer estaríamos falando do assunto. Já que aqui estamos, vamos ver até onde chegamos com essas perguntas. Afinal, o método socrático sempre trouxe bons resultados na produção de conhecimento.

PERGUNTAS E RESPOSTAS
Uma das consequências não intencionais (embora óbvia) da guerra às drogas e, especificamente, da criminalização delas é que toda e qualquer atividade que as envolve ocorrerá ao resguardo dos olhares públicos. Ninguém vai arriscar pagar as duras penas que a lei impõe por “trazer consigo” essas substâncias. Assim, fica difícil conhecer a história das drogas ilegais, incluído aí o crack.(...)

O crack é justamente o resultado dessa filosofia de mercado: um produto mais barato, que pode ser produzido em cozinhas domésticas, a partir da pasta base, que nada mais é do que o entorpecente ainda em estado bruto e mais propício para o transporte em grandes quantidades. Qual a diferença mais importante entre o crack e a cocaína? Em vez de ser aspirado, o crack é fumado. Isso causa uma diferença essencial na forma com que a droga age em nosso organismo.

Aspirada, a cocaína percorre o nosso corpo de maneira difusa. Apenas parte da substância vai para o cérebro, onde começa a fazer efeito. Na prática, isso significa que o efeito da droga leva mais tempo para começar, demora mais para terminar e é mais ameno. Se a mesma dose do princípio ativo for consumida na forma de crack, o percurso no organismo será outro. Ao ser fumada, a droga entra pelo pulmão, um órgão muito vascularizado e com grande superfície de contato. De uma só vez, uma quantidade enorme entra na corrente sanguínea. Do pulmão, a substância será bombeada diretamente para o cérebro. O efeito começará mais rapidamente, durará menos tempo e será mais intenso. Por isso que acredita-se que o crack é tão viciante.

Essas informações ajudam a compreender um pouco melhor o crack. Contudo, não é a existência em si da droga que causa danos, mas o seu uso. Mais especificamente, o seu uso e as suas consequências. A diferença não é trivial, porque define, em última instância, a forma de lidar com o problema.(...)

POLÍTICAS PARA O CRACK
(...) A população carioca convive hoje com o novo termo “acolhimento compulsório”. Custa-nos compreendê-lo, pois nunca foi devidamente esclarecido. Note- se que o acolhimento compulsório refere-se apenas aos casos com menores de idade, pois, afirmam as autoridades, pode-se inferir que, já que esses meninos e meninas estão nas ruas fumando crack, a família não cuida deles. No caso de maiores de idade, é mais difícil restringir o direito constitucional de ir e vir de uma pessoa em pleno gozo dos seus direitos civis.

No dia 11 de abril de 2012, o jornal O Globo publicou uma grande matéria sobre o crack. O jornal pediu à Secretaria Municipal de Assistência Social que fizesse um “mapeamento informal” do problema. A expressão incomoda. Informalmente, o jornal informa haver cerca de 3.000 usuários e usuárias circulando pelas chamadas “cracolândias”, dos quais 20% seriam menores de idade. A objetividade desses dados é altamente questionável, mas vamos lá.

Segundo o jornal, seria o caso dizer que, no município do Rio de Janeiro, 20% das pessoas que usam crack poderiam ser incluídas na política de acolhimento compulsório. Uma vez “acolhidos”, os menores seriam encaminhados a abrigos e centros de tratamento. À primeira vista, pode parecer uma solução interessante, mas será mesmo assim? (...)

Se o objetivo é este, e esperemos que assim seja, parece boa ideia compreender as causas que levaram cidadãos e cidadãs brasileiros a dedicar parcela tão significativa de suas energias para alimentar a adição. Terá o consumo do crack competido com quais outras alternativas de engajamento social? Houve escolha possível entre esporte, cultura, educação, família acolhedora, de um lado, e o crack e o mercado ilícito, de outro?

A rigor, faltam ainda estudos para poder ser taxativo ao responder as perguntas acima. Há, contudo, alguns indícios do que anda ocorrendo.
Hoje, se observa na política da cidade do Rio de Janeiro com relação às drogas duas tendências. Em primeiro lugar, o impulso às UPPs. Em segundo lugar, as rondas da Secretaria Municipal de Assistência Social, que gerencia o tal acolhimento compulsório.

Sobre o primeiro caso, pragmaticamente, nos resta pressionar o governo e torcer pelo melhor. Essa política não deve ser revertida. (...) Críticas à ausência das secretarias de Esporte e Lazer, de projetos de educação e capacitação profissional e de maior articulação com a sociedade civil são pertinentes e necessárias. Devemos consertar o que já foi feito. Trocar o pneu com o carro em movimento.

Já no que se refere à atenção ao crack e, mais especificamente, a quem o consome, é preciso, sim, questionar o que os governos federal, estaduais e as prefeituras estão pensando para a solução desse imbróglio. Talvez seja uma boa ideia buscar o que tem sido feito em outras cidades mundo afora. Se tivermos de passar por experiências mal sucedidas, uma por uma, até encontrar aquela que satisfaça as demandas de uma sociedade democrática, alguém vai pagar um alto preço por isso. E não serão os políticos. (...)

E AS OUTRAS DROGAS?
Por fim, uma última questão é importante para nos aproximarmos de um sistema que dê atenção aos usuários e usuárias de drogas de forma mais humana e eficaz. Será mesmo que o crack deve ser o foco dos esforços do governo, centro da política pública no trato com as drogas? Ou será ele apenas mais uma das substâncias sobre as quais se deve trabalhar? Segundo dados do Sistema Único de Saúde, o SUS, o álcool é a droga que mais danos causa a nossa saúde. Proibi-lo não faz sentido ou não teria resultado, mas por que não se concebe um plano nacional para a consciência sobre o álcool?

Fazendo uma análise fria dos dados, a atenção quase exclusiva dedicada ao crack definitivamente não se justifica. O sistema de saúde precisa, sim, preparar-se melhor para acolher quem usa drogas. O problema não será resolvido por completo sem mudanças na legislação vigente e, principalmente, sem outro paradigma de políticas públicas para lidar com o problema. Esse deve ser o foco principal dos futuros debates.

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