segunda-feira, 16 de novembro de 2009



AUSTERIDADE
Helio e Selma Amorim*

Vivendo na condição de extrema pobreza ou miséria indigna, os que nascem estão condenados a reproduzir a pobreza pelos danos irreversíveis causados pela falta de alimentação adequada e efetiva assistência à saúde, pela exclusão social e condições precárias de vida desde o nascimento.

Falar-lhes de austeridade seria de mau gosto. Mesmo assim, há quem repreenda os pobres por gastarem numa cerveja de sábado ou na compra de alguma bugiganga inútil os parcos reais que, na ótica das nossas simpáticas elites, deveriam ser aplicados, por exemplo, em mais comida e higiene... Com essa apreciação crítica, sentem-se aliviadas. Afinal essa gente é pobre porque esbanja seu dinheirinho em coisas supérfluas em vez de comprar mais feijão.

Se nos transferimos para as famílias das classes médias, entretanto, vamos nos deparar com a farra consumista dos que têm trabalho, renda ou emprego seguro, e uma austeridade contrafeita dos que perderam o emprego ou o poder aquisitivo em conseqüência da crise financeira mundial.

Em ambos os casos, é forte o desejo de consumir, insuflado pela propaganda inteligente e sofisticada que associa à felicidade o consumo de bens atraentes de utilidade duvidosa.

Então os que podem, compram tudo o que se anuncia prometendo mais conforto e prazer. Comprar e possuir passa a ser um definidor de status social. A competição se estabelece, o espírito de imitação atua, a insensibilidade social e ecológica colabora. O amigo que compra para o filho uma engenhoca nova anunciada nas cores da TV passa a ser uma indução forte para que eu faça o mesmo por pressão desesperada do meu filho. Ele se julgará o mais infeliz dos infantes ou adolescentes mortais se não ganhar aquele brinquedinho idiota ou o joguinho estúpido de computador que lhe ensinará como atropelar velhinhos e mulheres grávidas para ganhar mais pontos.

Na mesa, o tradicional café com leite com pão e manteiga e o velho queijinho mineiro deram lugar a uma parafernália de tipos de pães, caixas e embalagens plásticas coloridas de cereais, sucrilhos, variados aditivos achocolatados para o leite longa-vida com a promessa de fartura de saúde e energia para a gurizada, à base de dezenas de vitaminas e proteínas - sem as quais ninguém sobreviverá, dizem os rótulos.

As embalagens sofisticadas, talheres, copos e toalhas descartáveis assustam: as latas de lixo ficam entulhadas, a cada dia, de "bens da natureza e frutos do trabalho do homem" que se descartam porque para isso foram feitos, em favor da simplificação do trabalho doméstico. A família mergulha, sem sentir, na sociedade do descartável e do desperdício criminoso, que destrói a natureza sem piedade.

É claro que se os bens realmente úteis e confortos simplificadores da vida doméstica fossem acessíveis para todos e que a natureza não fosse depredada por esse consumo, bastaria o cuidado de não se chegar à dependência desumanizadora das famílias a esses múltiplos bens materiais. Acontece que não é assim. A maioria das famílias não tem acesso a esses bens de consumo e a predação da natureza é cada vez mais evidente e preocupante.

Por outro lado, nas classes médias, a busca sôfrega pela posse de bens materiais, associada ao consumo obsessivo, se torna cada vez mais onerosa e exigente. É preciso trabalhar mais, fazer horas extras e "bicos" de fins de semana para ganhar mais e comprar mais. O tempo para o diálogo, para o lazer e a convivência familiar e social escasseia. Vive-se para trabalhar, comprar e consumir. Não há tempo para os filhos e para a contemplação da natureza.

Define-se um padrão de vida arriscado. Qualquer abalo na situação econômica da família que afete esse nível de consumo a que se habituou gera uma insatisfação nervosa. Já não sabem mais viver sem aquela quantidade de confortos e bens que passaram de supérfluos a indispensáveis.

O simples receio de que isto possa acontecer já afeta a tranqüilidade da família. É claro que um elevado padrão de vida escraviza e estressa. A austeridade, ao contrário, é libertadora e gera mais tranqüilidade. Se o padrão de consumo e conforto que adoto está abaixo do que meus rendimentos e capacidades pessoais me permitiriam, tenho maior segurança de que em situações de crise me será possível encontrar saídas para manter esse estilo de vida mais austero que adotamos.

Mais ainda e, principalmente: um padrão austero de vida gera uma capacidade maior de a família partilhar seus bens com os que nada têm. Os consumistas desvairados nunca têm como repartir. Estão sempre endividados nos seus variados cartões de créditos e cheques especiais para manter o seu arriscado padrão de consumo.

Como neutralizar ou pelo menos atenuar a indução ao consumismo desvairado nas famílias das classes médias?

Parece-nos que somente se pode enfrentar essa onda consumista avassaladora pela sensibilidade social cultivada desde cedo, com a consequente valorização da austeridade como opção de vida com mais liberdade, tranqüilidade e felicidade, entendida como expressão simbólica e ao mesmo tempo efetiva de solidariedade com os pobres. Austeridade que potencializa a capacidade de partilha de bens com quem não os tem.

Essa sensibilidade se constroi. Parte do contato habitual, físico, sensorial, com famílias pobres. Manter relações estreitas com famílias em situação de pobreza é essencial para se ver o mundo por sua ótica. Se desde criança os filhos são envolvidos nessa convivência com os deserdados e excluídos da sociedade, vão compreender, pouco a pouco, que o consumismo é absurdo, que o desperdício é uma agressão aos que vivem das migalhas dos ricos.

Sem esse envolvimento educativo e conscientizador, formam-se famílias burguesas que se isolam do mundo real em belos condomínios protegidos por grades e porteiros, mergulhados no consumismo desvairado, desenvolvendo as neuroses próprias desse modelo de família, que se manifestam na alienação e fuga da realidade e, nos casos extremos, no crescente uso de drogas, na multiplicação de gangues de jovens e adolescentes, até a opção pela criminalidade para alimentar a obsessão consumista, como o confessam tantos jovens delinquentes.

Vale resumir, insistindo: a austeridade é sem dúvida libertadora, base para a felicidade e expressão de solidariedade social.


*Membros do Movimento Familiar Cristão.

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